A mulher da etiqueta preta
Poucos eventos históricos me intrigam mais do que os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. À época com sete anos de idade eu não podia compreender muito bem o significado daquelas cenas nos jornais e telejornais. Mas algumas coisas jamais deixaram a minha memória: a cara de aflição com que meu pai — costumeiramente alegre — assistia à tevê; o então Presidente Bush filho anunciando a invasão do Afeganistão, em fins de 2001, e depois, em 2003, a invasão do Iraque, seguida das cenas hollywoodianas dos bombardeios; e, particularmente, não me esqueço da primeira vez que vi as cenas das mais de 200 pessoas que pulavam das torres, os chamados jumpers.
De lá pra cá consumi muita coisa sobre os atentados. Livros, artigos, documentários, filmes, relatórios oficiais e extraoficiais; fóruns de internet … praticamente tudo que pude encontrar, li. Nenhum desses materiais, entretanto, foram capazes de dimensionar aspecto humano daqueles eventos como o relato a seguir.
O relato vem de Ernest Armstead, um socorrista do EMS (especialista médico de emergência) do departamento de polícia da cidade de Nova Iorque (FDNY). O relato de Armstead fez parte de um livro intitulado “September 11th: an oral history” (11 de Setembro: a história narrada), compilado por Dean E Murphy. Neste poste, tomei a liberdade de traduzir o relato para o português.
“Eu penso nela como uma morta-viva. Eu falei com a morta-viva. E eu menti para a morta-viva. Eu disse a ela para esperar, que a ajuda estava chegando. Mas eu a declarei morta em minha mente. E ela sabia disso. Eu coloquei uma etiqueta preta com uma pequena cruz branca em volta do pescoço dela. E, limitada ao que suas circunstâncias permitiam naquele momento, ela me deu uma bronca por isso. Os psiquiatras e pessoal da equipe pós-trauma dizem que é bom para mim falar sobre ela e do que se passou no resto daquele dia. Eles dizem que é a única maneira de eu encontrar alguma paz com o que aconteceu e finalmente libertar minha mente daquela mulher, a morta-viva. Então aqui estou, falando com você.
Esta senhora estava entre meia dúzia de pessoas que eu vi que provavelmente haviam caído de uns 300 metros de altura ou mais quando o avião da American Airlines atingiu a torre norte do World Trade Center. Não tenho certeza de como ela chegou à praça central que ficava aos pés das duas torres, a chamada Austin J. Tobin Plaza. Talvez ela estivesse naquele avião, a caminho de Los Angeles, e tivesse sido ejetada do avião pela força da colisão. Ou talvez ela fosse uma funcionária de algum escritório na torre, sentada perto de uma das janelas e tivesse sido puxada para fora do prédio quando chão dos andares atingidos pela a aeronave afundaram. Ou talvez ela tivesse ficado presa nos andares acima do ponto de impacto e decidido pular para escapar das chamas, embora eu não ache isso.
Eu a encontrei antes mesmo que a maioria dessas pessoas fosse vista pulando. Ela era uma mulher elegante. Mais ou menos da minha idade, cinquenta e poucos anos. Eu podia tirar essa conclusão mesmo com tudo o que ela tinha passado até ali. Eu podia dizer que ela tinha o cabelo muito bem penteado. Morena. Ela usava brincos de bom gosto. Ela estava usando uma maquiagem bonita. E na minha profissão você nota as roupas porque muitas vezes você tem que cortá-las em pedaços para salvar vidas. Essa foi a primeira coisa que me veio à mente: Esta senhora está bem vestida …
A triagem é a primeira coisa que deve ser feita em um desastre como este. Basicamente significa dividir os feridos em quatro categorias para que as equipes médicas de apoio possam se mover rapidamente e dar tratamento àqueles que precisam mais urgentemente. As categorias são indicadas por etiquetas coloridas que são penduradas no pescoço da pessoa ferida. Verde é o menos sério. Amarelo, um pouco mais. Vermelho indica ferimentos críticos. E preto significa que a pessoa está morta ou perto disso. Quando você está envolvido em triagem, você tem uma coisa na sua mente o tempo todo: meu reforço está chegando … meu reforço está chegando.
Essa é a razão pela qual você pode marcar pessoas que obviamente precisam de ajuda e não parar, naquele momento, para ajudá-las. Você sabe que precisa marcar todos, e você sabe que alguém com uma maleta médica está vindo logo atrás de você. Isso certamente é o que eu estava pensando quando encontrei aquela senhora na praça central do World Trade Center, o grande espaço aberto entre as duas torres que tinha uma fonte e uma escultura redonda no meio.
Eu tinha terminado de marcar todos os corpos que encontrei nas escadas, quando me virei para encarar a praça Austin J. Tobin. Eu não tinha notado as pessoas lá no meu caminho para cima porque eu estava com muita pressa e havia uma multidão de bombeiros bloqueando minha visão pela janela. Mas agora eu via algo tão horrível que estou feliz por não ter visto da primeira vez.
Quando o avião atingiu, uma quantidade incrível de destroços da colisão caiu na praça. A maioria eram pedaços de avião e prédio que tinham pouco significado para mim. Mas em meio à destruição, havia cerca de meia dúzia de pessoas. Corri em direção a elas, minhas etiquetas de triagem na mão. Havia um homem tendo uma convulsão e seus olhos estavam rolando para a parte de trás da cabeça. Ele havia batido no pavimento com tanta força que não havia praticamente mais nada intacto de seu corpo. Havia alguns outros que eu nunca cheguei a ver, mas eu podia ver de uma curta distância que eles estavam mortos. E então havia a senhora com o penteado bonito e brincos.
Quando cheguei até ela, arranquei uma etiqueta preta. O que me impressionou — e me assustou — foi que ela estava alerta e observando o que eu estava fazendo. Coloquei a etiqueta em seu pescoço e ela olhou para mim e disse: “Não estou morta. Ligue para minha filha. Não estou morta.” Fiquei tão assustado que por uma fração de segundo fiquei sem palavras. “Senhora”, eu disse, “não se preocupe com isso. Já voltamos para tratar de você.” Era mentira. Não voltaríamos. Ela não conseguia ver o que eu conseguia ver. De alguma forma, acho que foi uma corrente de ar ou algo assim, sua queda foi amortecida o suficiente para que seu corpo não se desintegrasse como as outras pessoas que pularam. Ainda assim, seu corpo estava tão retorcido e dilacerado que eu só conseguia me perguntar: Por que essa senhora ainda está viva e falando comigo? Como isso pode ser? Seu pulmão direito, ombro e cabeça estavam intactos, mas do diafragma para baixo ela estava irreconhecível. No entanto, ela estava lúcida o suficiente para continuar a discutir comigo. “Não estou morta”, ela insistiu novamente …. isso me convenceu de que ela tinha algum treinamento médico porque sabia que eu tinha lhe dado a etiqueta preta … a marca negra da morte. E ela se ressentia disso. “Não se preocupe com o que eu coloquei em volta do seu pescoço”, eu disse a ela. “Meus colegas de trabalho estão vindo agora. Eles vão cuidar de você. “Eu sabia que tinha que continuar, mas ela tinha me abalado tão profundamente que fiquei ali por um ou dois segundos.
Então eu passei por cima dela para chegar aos outros. Coloquei uma etiqueta preta no homem que estava tendo a convulsão. Mas outra onda de vítimas chegou no saguão do andar de cima, então eu precisava voltar. Enquanto eu voltava, passei novamente por cima da senhora. E por mais assustador e perturbador que nosso primeiro encontro tenha sido, o segundo foi ainda pior. Ela começou a gritar comigo. “Eu não estou morta! Eu não estou morta!” “Eles estão vindo, eles estão vindo”, eu respondi sem parar. “Eu não estou morta! Eu não estou morta!” Voltei para o saguão, tirando-a da minha mente por enquanto.
Havia tanta coisa que precisava ser feita. Comecei a marcar as centenas de pessoas que saíam do prédio… Posso dizer honestamente que não temi a morte, embora tenha caminhado por horas em um lugar miserável que só posso descrever com uma referência bíblica — “o vale da sombra da morte”. Senti a morte, ouvi-a, vi-a e senti-a. E com aquela senhora na praça, até falei com ela.